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Estava tão frio

 
Na parede da cozinha o ponteiro do relógio caminha calmamente, alheio à correria que causava e vidas que mudava em apenas um segundo. O olhava e desejava controlar os ponteiros à meu bel-prazer. Acelerar, voltar, até mesmo diminuir o tempo dos segundos. Visitar o passado e me libertar das amarraras que me fizeram ver-te partir. Sentir na pele as sensações daquela manhã chuvosa em que me destes a mão para atravessarmos a rua. Nada me fizeste além de entregar a mão, e senti como se me presenteasses com sua vida. Senti-me dona, finalmente, daquilo que tanto queria. Em poucos segundos, libertou-me a mão, mas permaneci sentindo seu toque por horas.
Se pudesse, retornaria ao momento em que te conheci, só para reviver nossa história. Discutiríamos novamente se a cor de seu casaco era vinho, ou vermelho desbotado, rindo ao final e decidindo que não passava de um casaco. Naquela noite não estava tão frio, e mesmo assim me ofereceu seu casaco-sem-cor, e aceitei - só para sentir seu cheiro de perto. Esqueceria de devolver-lhe, e voltarias admitindo que só emprestara para ter desculpa e me ver. E, como naquela vez meses atrás, agiria com descaso, apesar do pulso acelerado. Em meu íntimo temia desmaiar de contentamento, mas como moça orgulhosa que sempre fui, jamais saberias desta verdade.
Se soubesses que fora pela ausência desse comentário que partirias, jamais o deixaria guardado na gaveta do meu peito. Se soubesse que meus olhos não eram compreendidos em suas declarações à meia noite, traduziria pelos lábios. Nada mais eras do que tudo aquilo que minha vida pedia, e nada mais fui além de uma menina que temeu ter os sentimentos ridicularizados. Precisei ver-te partir para entender que sentimento, para fazer bem, precisa ser dito sem medo ou vergonha. Mas eu, tola, não disse. E você, imprudente, disseste na hora errada. Declarou-se antes do adeus, plantou em meu peito misto de agonia com ilusão de retorno. De todas as minhas recordações tristes, amargas e traiçoeiras, a de sua partida ainda é a que mais dói. O tempo parecia que sabia o resultado daquela conversa, o vento parecia tentar arrancar os telhados e me levar para longe, enquanto os trovões tornavam sua voz quase inaudível. Oh, doce tormento, eles o fizeram gritar. Não bastava dilacerar meu peito, precisava ser aos berros. Nos seus olhos, eu vi, acharás que estava enlouquecida de desespero, mas vi. Enxerguei vontade de dizer naquela sua voz rouca de quanto estás arrependido, que não passara de uma brincadeira e péssimo gosto. Mas como orgulhoso que és, expulsou-o e foi-se embora.
Agora, cá estou, olhando o relógio velho da cozinha, cheia de saudade. Revivendo nossa história todos os dias. Desejando, desta vez, acelerar o futuro, e ver-te cruzar meu caminho mais uma vez. E desta vez, juro-te, não permitirei despedidas - Gabriela Santarosa

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